O maior
A carreira de Mino Carta está intrinsecamente ligada à história do jornalismo no Brasil contemporâneo.

O jornalista Mino Carta, fundador e diretor de redação de CartaCapital, faleceu na madrugada de terça-feira, 2, aos 91 anos, devido a uma pneumonia. Um ano antes, Mino enfrentava questões de saúde, com idas e vindas ao hospital. Na última internação, permaneceu duas semanas na UTI do Sírio-Libanês, em São Paulo.
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A trajetória de Mino Carta se entrelaça com a história do jornalismo contemporâneo no Brasil. Aos 27 anos, aceitou o convite de Victor Civita para liderar uma nova revista da então nascente editora Abril, Quatro Rodas, mesmo sem saber dirigir ou diferenciar um Volkswagen de uma Mercedes, como frequentemente afirmava. Ali descobriria o talento para criar e conduzir algumas das publicações mais icônicas e influentes. Lançou as revistas Veja, em 1968, IstoÉ, em 1976, e CartaCapital, em 1994. Esteve à frente da equipe fundadora do Jornal da Tarde, em 1966, reconhecido pela modernidade na diagramação e pela qualidade literária das reportagens que inspiraram gerações de jornalistas.
Durante toda a vida, a Olivetti foi sua principal companhia. Mino detestava as novas tecnologias e previa: “Um dia, os computadores vão consumir as pessoas”. Em entrevista a Lira Neto, lamentou os efeitos da revolução tecnológica sobre o exercício da profissão: “Em vez de praticar um jornalismo realmente ativo, na busca corajosa pela verdade, a imprensa está sendo engolida e escravizada pelas novas mídias”. Também estava desiludido em relação ao futuro do Brasil, devido à “permanência de um pensamento medieval representado pela Casa-Grande”. De forma aberta, admitiu ter perdido as esperanças. “Não há motivo para alimentá-la. Resta, no entanto, a recomendação de meus mestres da filosofia, como (Baruch) Spinoza: ‘Nem fé, nem medo’. É uma boa máxima. Acredite em nada. Tenha medo de nada.”
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Os pincéis de Mino Carta
Nascido em Gênova, Mino Carta pertence à terceira geração de jornalistas da família, tradição iniciada pelo avô materno Luigi Becherucci, diretor do jornal genovês Caffaro até perder o cargo em meio à perseguição fascista. Seu pai, Giannino, foi preso em abril de 1944 devido à ferrenha oposição ao regime de Benito Mussolini, mas conseguiu fugir dois meses depois, aproveitando-se de uma revolta entre os carcereiros. Logo após o término da Segunda Guerra, aceitou um convite para trabalhar no Brasil. Por intermédio do amigo Francisco Malgeri, conheceu o industrial italiano Francisco Matarazzo Júnior, que acabara de adquirir a maior parte das ações da Folha de S. Paulo e o contratou para dirigir o jornal. Ao chegar a São Paulo com a família, Giannino descobriu, no entanto, que o emprego não existia mais. Pela legislação nacional, Chiquinho, sucessor do pai no comando das Indústrias Matarazzo, estava proibido de assumir o controle de um veículo de comunicação brasileiro. Decidido a permanecer no Brasil por temer um novo conflito armado na Europa, Carta, também bom desenhista, virou-se com a produção de capas para os livros da editora Instituto Progresso Editorial (IPE), na qual Malgeri tinha participação societária.
A primeira experiência de Mino no jornalismo surgiu de forma inesperada, quando tinha apenas 16 anos. Em 1950, o pai recebeu de dois jornais italianos a missão de produzir artigos sobre a Copa do Brasil. Ele concordou, mas, por não gostar de futebol, solicitou ao filho se oferecesse para escrever os textos em seu lugar. “Como recebiam bem, aceitei, pensando em encomendar um terno azul-marinho a um bom alfaiate, que eu tanto desejava para participar dignamente dos bailes de sábado”, recordou em 2008, em uma entrevista ao portal da Associação Brasileira de Imprensa.
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Editor de revistas
Após deixar o curso de Direito na Rua São Francisco, Mino retornou em 1956, acompanhado da família, à Itália, onde trabalhou na Gazetta del Popolo, de Turim. Também atuou como correspondente dos brasileiros Diário de Notícias e Mundo Ilustrado. Pouco depois, seu pai regressaria ao Brasil para assumir a editoria internacional de O Estado de S. Paulo. Em sequência, seu irmão, Luigi, aceitaria um convite de Victor Civita para trabalhar na Abril e, em breve, assumiria um cargo de direção na editora. Por insistência de Luis, Mino liderou a equipe responsável por lançar, em 1960, a versão brasileira da revista Quattroruote, de grande sucesso na Itália. Sob seu comando, surgiram nomes importantes do jornalismo brasileiro, como José Hamilton Ribeiro e Paulo Patarra, que mais tarde o acompanhariam na fundação de Veja.
Produziu e liderou algumas das publicações mais emblemáticas do país e desenvolveu grupos de jornalistas.
Graças aos amplos anúncios da indústria automobilística, em franca expansão, a Quatro Rodas alcançou rápido sucesso. A experiência chamou a atenção de Júlio Mesquita Neto, diretor do Estadão, que convidou Mino para editar Esportes, publicação fechada aos domingos à noite, com um inovador equipamento de telefoto, que possibilitava a transmissão de textos e fotografias por telefone. Com uma linguagem leve, contrastando com o estilo austero do jornal da família Mesquita, a revista esportiva também inovou na diagramação, com fotografias grandes e atraentes, e serviu de campo de testes para o lançamento do Jornal da Tarde em 1966, igualmente revolucionário.
Ao retornar à editora Abril para lançar Veja, Mino convocou vários dos profissionais que estiveram a seu lado no Jornal da Tarde, entre eles Nirlando Beirã, editor e colunista de CartaCapital até sua morte, em 2020. O convite de Civita para criar uma news magazine de inspiração norte-americana veio em 1967. Diante do desafio de fazer jornalismo político em plena ditadura, Mino impôs uma condição para participar do projeto, como afirmou em numerosas ocasiões: “Só aceitaria o convite se os donos da Abril, uma vez definida a fórmula da publicação, se portassem como leitores a cada edição, passível de discussão, mas a posteriori, quer dizer, quando já nas bancas”. O acordo foi aceito pelos patrões e vigorou até a sua demissão, em 1976.
Fora de Veja, a convite do amigo Cláudio Abramo, então diretor de redação da Folha de S. Paulo, passou a assinar uma coluna na página 2 do jornal. A temporada no diário da família Frias durou pouco, pois logo em seguida foi convidado a criar IstoÉ, fundada pela Editora Três, sociedade entre Domingo Alzugaray, Fabrizio Fasano e seu irmão Luis Carta. Inicialmente mensal, a revista passou a ter periodicidade semanal e foi a primeira a publicar, em 1978, uma grande entrevista com Luiz Inácio Lula da Silva, líder em ascensão do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Devido à amizade cultivada desde aquele momento, o jornalista posteriormente ficou responsável por convencer Lula a participar do comício das “Diretas Já” no Anhangabaú, missão confiada a ele por dois líderes do movimento, Ulysses Guimarães e Franco Montoro.
Aos 16 anos, cobriu o Mundial de 1950 para duas revistas italianas. “Como pagavam bem, aceitei”, recordava.
A aventura do Jornal da República, em parceria com Domingos Alzugaray, foi de curta duração. Mesmo com um time de grande destaque, incluindo o jornalista Ricardo Kotscho e o artista gráfico Hélio de Almeida, o diário enfrentou dificuldades com a ausência de anúncios e durou apenas cinco meses. “Não tínhamos reforços para fazer aquilo. Jornal sai todo dia, é um sorvedouro de dinheiro. É impossível comparar com uma publicação semanal”, afirmou a ABI. “Domingos se retirou da parada, algumas pessoas me ajudavam, entre elas o Raymundo Faoro, que era um pensador – fundamental para entender o Brasil, aliás – não um jornalista. Éramos seis donos da operação, mas um bando de pobretos. Até aparecer um anjo, o Fernando Moreira Salles, filho do Walter, que se dispôs a tapar o buraco do jornal e ficar com a revista. Acabamos perdendo os dois.”
Moreira Salles adquiriu a Istoé em 1981. Mino retornaria a trabalhar com Alzugaray na revista Senhor, desta vez como funcionário. Nas décadas de 1980, liderou o programa Cartão Vermelho, na TV Bandeirantes, e Jogo de Carta, na TV Record. Retornaria à direção da Istoé, recomprada por Alzugaray, em 1988 e comandaria a publicação até 1993, após o impeachment de Fernando Collor, só possível pelas reportagens incontestáveis publicadas pela semanal, a começar pelas revelações do motorista Eriberto França.
Nas épocas da ditadura
As dificuldades associadas à ditadura logo se manifestaram na vida de Mino Carta. Na primeira edição da revista Veja, de 11 de setembro de 1968, os militares ficaram incomodados com a capa, que apresentava uma foice e um martelo. “O texto, escrito por mim, abordava as tensões por trás da Cortina de Ferro, como era comum na época. A Tchecoslováquia, que buscava se libertar da dominação soviética, havia sido invadida por tropas russas. Contudo, os militares, com uma ingenuidade notável, não perceberam, na imagem da capa, a crítica implícita à violência de Moscou”, explicou Lira Neto, autor do livro Mino Carta: Sem Fé nem Medo, recentemente republicado pelo Centro de Memória do IREE.
Em 1964, a temperatura incluiu outra vertente, a favor da Igreja Católica politicamente envolvida, e com a cobertura do congresso da União Nacional dos Estudantes em Ibiúna, que culminou na prisão de diversos estudantes, incluindo o jovem líder da entidade estudantil, José Dirceu.
Mino confrontou a censura, persistiu na independência e defendeu um Brasil mais equânime.
No ano seguinte, com a capa do ÂAI-5, ÂVeja provocou novamente os militares, publicando 150 casos de tortura nas prisões da ditadura, apresentados de forma concisa, e três casos detalhados, resultado da investigação de uma equipe de oito repórteres coordenada por Raymundo Rodrigues Pereira. A revista foi apreendida nas bancas, mas outros veículos noticiosos abordaram o assunto. Na edição subsequente, em uma tentativa de contornar a censura, a publicação reproduziu o discurso do coronel Otávio Costa, responsável pela propaganda do regime, que afirmava que o novo ditador, Emílio Medici, estava disposto a reduzir a repressão. A capa trazia o título ambíguo “O presidente não admite tortura”, o que não implica que a prática não existisse.
A revista passou a sofrer constante assédio dos agentes da repressão, que ocasionalmente batiam à porta da redação para abduzir críticos do regime em suas viaturas C-14. “Fui interrogado duas vezes pelo delegado (Sérgio) Fleury, que me ameaçava: ‘Se eu quiser, fecho sua revista’.” “Eu dizia: ‘Minha, dos Civita’”, rememorou.
Na mesma entrevista, Lira Neto, a última, Mino, também falou sobre seu relacionamento com uma fonte graduada do regime, o general Golbery do Couto e Silva, de quem se tornou próximo. “Ele era contra a censura à imprensa, enfaticamente contra. Sua verdadeira função no governo era conter Geisel, que não desejava o processo de abertura, ao contrário dele.”
Golbery não obteve sucesso, contudo, Armando Falcão, ministro da Justiça, intensificou a censura na redação e exigiu a demissão do jornalista e dramaturgo ÂPlínio Marcos. Preocupado com o atraso na liberação de um empréstimo de 50 milhões de dólares da Caixa Econômica Federal para expandir a editora, Civita estava disposto a fazer essa e outras concessões aos militares. Mino recusou-se e pediu demissão, renunciando à indenização trabalhista a que teria direito. O jornalista costumava dizer em tom de brincadeira que Cristo foi traído por 30 moedas de prata, mas sua “aparentemente” cabeça valia um pouco mais.
Os empregos próprios.
Mino afirmava ter criado seus próprios empregos após a saída de Veja. A CartaCapital, idealizada por um grupo de amigos de longa data em sua sala de estar, representou o último projeto. Quando o primeiro exemplar foi lançado, em agosto de 1994, a internet ainda estava em desenvolvimento. Inicialmente publicada mensalmente, sob a égide da Carta Editorial, liderada por seu sobrinho Andrea, a revista passou a ser lançada a cada quinze dias em 1996 e semanalmente em 2001.
Mino frequentemente afirmava que a CartaCapital representava a melhor revista que ele publicou e dirigiu, sendo a mais próxima de sua concepção de jornalismo, fundamentada em três premissas: a fidelidade à verdade factual, o exercício do espírito crítico e a fiscalização do poder em suas diversas manifestações. Com uma perspectiva distinta, em oposição ao pensamento hegemônico na mídia, a publicação atingiu 31 anos. Diversas reportagens se destacaram, incluindo os casos do BNDES, as negociações de Daniel Dantas, o controle da energia durante o governo Fernando Henrique Cardoso e as denúncias, anteriores à Vaza Jato, dos crimes praticados por Sergio Moro e a força-tarefa de Curitiba, alegadamente em nome do combate à corrupção.
O autor
Mino sempre detestou a ideia de uma biografia, especialmente de uma autobiografia. Negou todas as sugestões e pedidos para registrar suas memórias. Grande parte de sua trajetória de vida e recordações da infância estão presentes nos três romances que, em certa medida, formam uma trilogia: Castelo de Âmbar, de 2000, A Sombra do Silêncio, de 2003, e A Vida de Mat, de 2016. O último é o mais memorialístico e aborda a maneira como o jornalista compreendia a existência. “Tudo é eterno e nada é”, escreveu. “A questão é o tempo, como sabemos, invenção do homem. Sinto que tudo na vida ocorre no mesmo momento, como se nascessermos mortos”. O Brasil, de 2013, concentra sua visão crítica e perspicaz da história do país. Crônicas da Mooca (com a bênção de San Gennaro) foi escrito “sem maiores pretensões, ditadas, porém, pelo sentimento e ilustradas pela objetividade do velho companheiro de aventuras”, o fotógrafo Hélio Campos Mello.
Publicado na edição nº 1378 de CartaCapital, em 10 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O maior”.
Fonte por: Carta Capital
Autor(a):
Pedro Santana
Ex-jogador de futebol profissional, Pedro Santana trocou os campos pela redação. Hoje, ele escreve análises detalhadas e bastidores de esportes, com um olhar único de quem já viveu o outro lado. Seus textos envolvem os leitores e criam discussões apaixonadas entre fãs.