O filme que estreou nesta semana na Netflix é bem-intencionado, porém apresenta uma visão excessivamente pessimista do campo religioso.
Na Câmara dos Deputados, em Brasília, um parlamentar contabiliza as fileiras do plenário e relata: “Em 2002, contávamos com duas fileiras, totalizando 50. Atualmente, somos 152”. Aquele “nós” a que o ilustre parlamentar se refere é a bancada evangélica, importante força conservadora no Congresso Nacional, que apresentou um crescimento exponencial nos últimos anos. Uma peça fundamental do jogo político atual, considerando que, segundo o último Censo, 26,9% dos brasileiros, mais de um quarto da população, se identificavam como evangélicos.
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Compreender como esse fenômeno ocorre e suas relações com a ascensão do bolsonarismo e da extrema direita é uma das propostas do Apocalipse nos Trópicos, o trabalho mais recente da cineasta Petra Costa, que ficou conhecida por Democracia em Vertigem.
Uma das vozes mais proeminentes no documentário é a do pastor Silas Malafaia. Em um de seus discursos, ele argumenta que “os anjos não descerão à Terra para aperfeiçoar o mundo”, defendendo a ideia de que a bancada evangélica deveria impactar a vida no mundo através da política.
Malafaia pode ser considerado dentro da “teologia do domínio”, uma ideologia estratégica e política que defende a crença de que cristãos têm a missão de conquistar o poder e moldar o Estado com base em princípios bíblicos. Com o aumento da população evangélica, essa teologia se manifesta não apenas como uma força religiosa, mas como um projeto de poder que busca transformar a democracia em uma teocracia, enfraquecendo os direitos de minorias em favor de uma maioria cristã organizada.
No Brasil, uma das vozes públicas que mais se posiciona e emite alertas sobre essa questão é o professor e historiador João Cezar de Castro Rocha. Em uma entrevista à Agência Pública no ano passado, ele comentou:
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Essa teologia foi desenvolvida inicialmente nos Estados Unidos e recentemente foi adotada no Brasil. Ela está na base da doutrina da Igreja da Lagoinha, onde Nikolas Ferreira professa sua fé. A teologia do domínio está na base de outras igrejas que influenciaram as concepções de Damares Alves e Michelle Bolsonaro. Quando Michelle diz que chegou a hora da libertação, o que ela está dizendo é: chegou a hora do Estado civil subordinar-se à fé, não à espiritualidade, mas à crença deles. Pensando nisso, em nosso país tudo começa a ficar bastante claro e muito preocupante.
No documentário de Petra Costa, a teologia do domínio é apresentada de forma rápida e sem explorar a dimensão completa da questão.
O discurso conservador dos pastores evangélicos, conforme observado pelo filósofo e historiador francês Michel Foucault no curso O Nascimento da Biopolítica (1979), articula-se na convergência entre técnicas provenientes do poder pastoral hebraico-cristão – focadas na regulação dos comportamentos e na imposição de obediência incondicional – e a racionalidade de governo neoliberal atual. Essa lógica demanda obediência e responsabilização individual, sob a figura do “empresário de si mesmo”, sujeito que sacrifica tudo em nome do capital.
O cristianismo primitivo recorreu ao ascetismo grego dos estoicos e ao neoplatonismo para consolidar sua moralidade, enquanto os legionários contemporâneos, incluindo Pablo Marçal, promovendo sua startup do batismo em Israel, praticam um estoicismo diluído e adaptado, que não pode ser explicado unicamente por uma nova teologia da prosperidade.
É preciso questionar continuamente a historicidade das construções dos sistemas de crenças e seus símbolos historicamente estabelecidos.
Um aspecto notável do estudo é demonstrar a influência do lobby evangélico dos EUA no Brasil, durante a Guerra Fria. Sob o argumento de fornecer aulas de inglês, pastores norte-americanos entraram no país com o objetivo de disseminar valores religiosos compatíveis com a ideologia anticomunista.
O documentário demonstra como essa presença, aparentemente inofensiva, funcionou como estratégia de inserção cultural e política, contribuindo para a formação de parte do conservadorismo religioso que atualmente detém espaços de poder no Estado brasileiro.
O documentário, além de revisitar alguns momentos do impeachment de 2016 e da prisão de Lula por Sergio Moro, inclui uma entrevista com o presidente que discorre sobre a questão evangélica. Segundo ele, o sucesso dos pastores estaria relacionado a um esquema simplificado, de compreensão universal e fácil adesão: o diabo é o problema e Jesus é a solução.
Lula afirma que um dos motivos do fracasso da experiência comunista seria a não incorporação da fé.
No Brasil, além da Teologia da Libertação e das pastorais da terra no Nordeste, surgiram diversos núcleos religiosos que uniram movimentos populares, combateram a pobreza e promoveram a defesa da dignidade da pessoa humana. Recentemente, notamo-nos com a atuação constante do Padre Júlio Lancelotti, que atua diariamente em defesa da população de rua de São Paulo. A fé e a defesa dos pobres possuem uma longa tradição na América Latina.
As falhas mais críticas do documentário se encontram ao ignorar as disputas dentro do campo da fé evangélica e cristã, que são mencionadas de forma superficial com cenas de curta duração. Apocalipse nos Trópicos acaba construindo uma visão, se não estereotipada, muito fatalista desse campo religioso. Nesse ponto, o espectador que busca ampliar sua compreensão sobre esse contexto pode consultar também o ótimo documentário Fé em Disputa, produzido pelo Brasil de Fato.
Petra tentou compreender a essência das pessoas a partir da leitura do livro do Apocalipse. Seria interessante que ela buscasse além da etimologia grega da palavra e explorasse outra perspectiva da escatologia cristã: a Apocatílista. A tese do pensador Orígenes de Alexandria (185-253 d.C.), que foi posteriormente considerado herético, defendia que os últimos dias não seriam de condenação e sofrimento absoluto dos ímpios, mas da restauração de tudo e todos, com unificação com o divino: inclusive os níveis mais baixos do inferno seriam perdoados e restaurados. Orígenes de Alexandria está entre as leituras que inspiram os escritos de Walter Benjamin, um materialista histórico, cujo pensamento crítico circulou em um lugar limítrofe, nunca confortável, entre o misticismo judaico e o marxismo. Nas suas teses Sobre o Conceito de História, ele escreveu:
Em cada época, é preciso remover a tradição em favor do conformismo, que busca dominá-la. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele também vem como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as faíscas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convicto de que também os mortos não estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Possui mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e colaborou com a Ilustre da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).
Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte por: Brasil de Fato
Autor(a):
Fluente em quatro idiomas e com experiência em coberturas internacionais, Ricardo Tavares explora o impacto global dos principais acontecimentos. Ele já reportou diretamente de zonas de conflito e acompanha as relações diplomáticas de perto.