Documentário “Apocalipse nos trópicos” de Petra Costa não aborda conflitos internos no campo evangélico

O filme que estreou nesta semana na Netflix é bem-intencionado, porém apresenta uma visão excessivamente pessimista do campo religioso.

20/07/2025 9:41

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Documentário “Apocalipse nos trópicos” de Petra Costa não aborda conflitos internos no campo evangélico
(Imagem de reprodução da internet).

Na Câmara dos Deputados, em Brasília, um parlamentar contabiliza as fileiras do plenário e relata: “Em 2002, contávamos com duas fileiras, totalizando 50. Atualmente, somos 152”. Aquele “nós” a que o ilustre parlamentar se refere é a bancada evangélica, importante força conservadora no Congresso Nacional, que apresentou um crescimento exponencial nos últimos anos. Uma peça fundamental do jogo político atual, considerando que, segundo o último Censo, 26,9% dos brasileiros, mais de um quarto da população, se identificavam como evangélicos.

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Compreender como esse fenômeno ocorre e suas relações com a ascensão do bolsonarismo e da extrema direita é uma das propostas do Apocalipse nos Trópicos, o trabalho mais recente da cineasta Petra Costa, que ficou conhecida por Democracia em Vertigem.

Domínio Teológico

Uma das vozes mais proeminentes no documentário é a do pastor Silas Malafaia. Em um de seus discursos, ele argumenta que “os anjos não descerão à Terra para aperfeiçoar o mundo”, defendendo a ideia de que a bancada evangélica deveria impactar a vida no mundo através da política.

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Malafaia pode ser considerado dentro da “teologia do domínio”, uma ideologia estratégica e política que defende a crença de que cristãos têm a missão de conquistar o poder e moldar o Estado com base em princípios bíblicos. Com o aumento da população evangélica, essa teologia se manifesta não apenas como uma força religiosa, mas como um projeto de poder que busca transformar a democracia em uma teocracia, enfraquecendo os direitos de minorias em favor de uma maioria cristã organizada.

No Brasil, uma das vozes públicas que mais se posiciona e emite alertas sobre essa questão é o professor e historiador João Cezar de Castro Rocha. Em uma entrevista à Agência Pública no ano passado, ele comentou:

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Essa teologia foi desenvolvida inicialmente nos Estados Unidos e recentemente foi adotada no Brasil. Ela está na base da doutrina da Igreja da Lagoinha, onde Nikolas Ferreira professa sua fé. A teologia do domínio está na base de outras igrejas que influenciaram as concepções de Damares Alves e Michelle Bolsonaro. Quando Michelle diz que chegou a hora da libertação, o que ela está dizendo é: chegou a hora do Estado civil subordinar-se à fé, não à espiritualidade, mas à crença deles. Pensando nisso, em nosso país tudo começa a ficar bastante claro e muito preocupante.

No documentário de Petra Costa, a teologia do domínio é apresentada de forma rápida e sem explorar a dimensão completa da questão.

O discurso conservador dos pastores evangélicos, conforme observado pelo filósofo e historiador francês Michel Foucault no curso O Nascimento da Biopolítica (1979), articula-se na convergência entre técnicas provenientes do poder pastoral hebraico-cristão – focadas na regulação dos comportamentos e na imposição de obediência incondicional – e a racionalidade de governo neoliberal atual. Essa lógica demanda obediência e responsabilização individual, sob a figura do “empresário de si mesmo”, sujeito que sacrifica tudo em nome do capital.

O cristianismo primitivo recorreu ao ascetismo grego dos estoicos e ao neoplatonismo para consolidar sua moralidade, enquanto os legionários contemporâneos, incluindo Pablo Marçal, promovendo sua startup do batismo em Israel, praticam um estoicismo diluído e adaptado, que não pode ser explicado unicamente por uma nova teologia da prosperidade.

É preciso questionar continuamente a historicidade das construções dos sistemas de crenças e seus símbolos historicamente estabelecidos.

Guerra Fria

Um aspecto notável do estudo é demonstrar a influência do lobby evangélico dos EUA no Brasil, durante a Guerra Fria. Sob o argumento de fornecer aulas de inglês, pastores norte-americanos entraram no país com o objetivo de disseminar valores religiosos compatíveis com a ideologia anticomunista.

O documentário demonstra como essa presença, aparentemente inofensiva, funcionou como estratégia de inserção cultural e política, contribuindo para a formação de parte do conservadorismo religioso que atualmente detém espaços de poder no Estado brasileiro.

O Comunismo Fracassou por Negligenciar a Fé

O documentário, além de revisitar alguns momentos do impeachment de 2016 e da prisão de Lula por Sergio Moro, inclui uma entrevista com o presidente que discorre sobre a questão evangélica. Segundo ele, o sucesso dos pastores estaria relacionado a um esquema simplificado, de compreensão universal e fácil adesão: o diabo é o problema e Jesus é a solução.

Lula afirma que um dos motivos do fracasso da experiência comunista seria a não incorporação da fé.

No Brasil, além da Teologia da Libertação e das pastorais da terra no Nordeste, surgiram diversos núcleos religiosos que uniram movimentos populares, combateram a pobreza e promoveram a defesa da dignidade da pessoa humana. Recentemente, notamo-nos com a atuação constante do Padre Júlio Lancelotti, que atua diariamente em defesa da população de rua de São Paulo. A fé e a defesa dos pobres possuem uma longa tradição na América Latina.

As falhas mais críticas do documentário se encontram ao ignorar as disputas dentro do campo da fé evangélica e cristã, que são mencionadas de forma superficial com cenas de curta duração. Apocalipse nos Trópicos acaba construindo uma visão, se não estereotipada, muito fatalista desse campo religioso. Nesse ponto, o espectador que busca ampliar sua compreensão sobre esse contexto pode consultar também o ótimo documentário Fé em Disputa, produzido pelo Brasil de Fato.

Petra tentou compreender a essência das pessoas a partir da leitura do livro do Apocalipse. Seria interessante que ela buscasse além da etimologia grega da palavra e explorasse outra perspectiva da escatologia cristã: a Apocatílista. A tese do pensador Orígenes de Alexandria (185-253 d.C.), que foi posteriormente considerado herético, defendia que os últimos dias não seriam de condenação e sofrimento absoluto dos ímpios, mas da restauração de tudo e todos, com unificação com o divino: inclusive os níveis mais baixos do inferno seriam perdoados e restaurados. Orígenes de Alexandria está entre as leituras que inspiram os escritos de Walter Benjamin, um materialista histórico, cujo pensamento crítico circulou em um lugar limítrofe, nunca confortável, entre o misticismo judaico e o marxismo. Nas suas teses Sobre o Conceito de História, ele escreveu:

Em cada época, é preciso remover a tradição em favor do conformismo, que busca dominá-la. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele também vem como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as faíscas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convicto de que também os mortos não estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Possui mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e colaborou com a Ilustre da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).

Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.

Fonte por: Brasil de Fato

Fluente em quatro idiomas e com experiência em coberturas internacionais, Ricardo Tavares explora o impacto global dos principais acontecimentos. Ele já reportou diretamente de zonas de conflito e acompanha as relações diplomáticas de perto.