Cannabis Medicinal: Regulamentação Ameaça Tratamentos Acessíveis no Brasil

A regulamentação do cultivo de cannabis medicinal pode tornar inviável a oferta de tratamentos acessíveis no Brasil.

11/09/2025 16:50

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Cannabis Medicinal: Regulamentação Ameaça Tratamentos Acessíveis no Brasil
(Imagem de reprodução da internet).

A cabeleireira Lucilena de ­Jesus Vicente trabalha em pé, lidando com escovas, secadores e tesouras, uma rotina exaustiva de movimentos repetitivos nos braços e punhos. Com o tempo, a intensidade da atividade causou dores crônicas, a ponto de ela só conseguir iniciar uma nova jornada após ingerir vários analgésicos na noite anterior. Nem doses elevadas de relaxantes musculares nem sessões regulares de fisioterapia foram suficientes para aliviar o sofrimento. Foi então que o filho sugeriu um tratamento alternativo e apresentou-lhe a cannabis medicinal. “Sou de uma geração que, se ouve falar qualquer coisa de maconha, já pensa que é droga, que faz mal à saúde”, diz a profissional, hoje com 60 anos. Após assistir a palestras e vídeos com especialistas, Lucilena decidiu tentar e, há dois anos, vive uma nova realidade. “Não vou dizer que a dor sumiu, mas reduziu muito. Agora consigo trabalhar muito melhor.”

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O atendimento a Lucilena é oferecido por uma associação farmacêutica, a ­Abrapango, com sede em Brasília. Inicialmente, ela passou por avaliação médica e, posteriormente, foi acompanhada por uma assistente social. Apenas então obteve a prescrição para utilizar algumas gotas de óleo essencial de cannabis, três vezes ao dia. “É tudo muito cuidadoso, exige receita médica e eu sempre retorno ao médico para ajustar a dosagem de acordo com os sintomas”, relata. “Já faz dois anos e não troco esse tratamento por nada. Atualmente, indico para várias amigas, pois transformou minha vida”. A principal distinção entre a aquisição do produto na entidade ou em drogarias reside no custo. Com a dose atual, o gasto mensal é de 180 reais. Já a versão industrializada não fica disponível por menos de 400 reais. “Pela associação, consigo manter o tratamento. Se precisasse importar ou comprar em farmácia, não teria condições”, lamenta.

Lucilena é uma das mais de 672 mil pacientes que utilizam cannabis medicinal no Brasil. Um levantamento da organização Kaya Mind aponta um crescimento de 56% nesse número em 2024, em relação ao ano anterior. As associações canábicas atendem aproximadamente 22% desse público. A cabeleireira tem preocupação com o fim prematuro do tratamento. Em 30 de setembro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apresentará uma nova regulamentação para o cultivo de cannabis medicinal no país, em conformidade com uma determinação do Supremo Tribunal Federal. Os associados temem que as novas regras dificultem a extração artesanal do óleo por essas entidades, tornando o custo proibitivo para quem possui menor renda.

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Na reunião mais recente da Anvisa sobre o assunto, em 13 de agosto, os diretores avaliaram a sugestão de incorporar a cannabis ao Anexo 1 da Portaria 344/1998, o que possibilitaria o cultivo da planta para uso medicinal no Brasil, contanto que o teor de tetrahidrocanabinol (THC) – o componente psicoativo – seja igual ou inferior a 0,3%. Atualmente, para manter a produção, cada associação precisa buscar a Justiça e obter uma liminar que autorize a fabricação de óleos com finalidade terapêutica. As organizações advertem, contudo, que não possuem as condições técnicas ou financeiras para operar exclusivamente com sementes de baixo teor de THC. Ademais, destacam que certos tratamentos demandam concentrações mais elevadas da substância.

As organizações do uso da cannabis oferecem produtos com preços até três vezes inferiores aos praticados em farmácias.

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O fundador da Abrapango, Ítalo Henrique Nascimento, explica que as associações conseguem oferecer tratamento a baixo custo devido à produção dos medicamentos a partir de plantações próprias, em território nacional. Caso necessitem adequar-se aos padrões industriais, isso deixará de ser viável e poderá comprometer a continuidade dessas entidades. O mercado de produtos canábicos já movimenta valores expressivos no Brasil. Segundo a Kaya Mind, o faturamento do setor atingiu 853 milhões de reais em 2024, com projeção de 1 bilhão para este ano. Embora as associações atendam pouco mais de 20% dos pacientes, Nascimento identifica interesses econômicos por trás da nova regulamentação. “No Brasil, para obter inflorescência nos padrões da Anvisa, somente será possível com sementes transgênicas. Assim, o negócio se concentrará nas mãos de pouquíssimas empresas, como Monsanto e Bayer, que possuem capacidade de desenvolver essas sementes e cobrar royalties”, afirma.

As associações estabelecem parcerias com universidades para a produção de óleos essenciais, pomadas e outros produtos derivados da cannabis. A padronização obrigatória das inflorescências, conforme regulamentado, também teria um impacto negativo nas pesquisas. “Todos os nossos produtos são desenvolvidos no Instituto de Química da Universidade de Brasília e submetidos a análises certificadas em todas as etapas pela Universidade Federal de Santa Catarina”, declara Nascimento.

O THC, frequentemente visto com desconfiança pelo Conselho Federal de Medicina e pela Anvisa, é crucial para diversos tratamentos, segundo o médico Paulo Vinícius Carmo. “Certas patologias necessitam de concentrações de THC acima de 0,3%. Principalmente doenças neurodegenerativas, como esclerose múltipla, Alzheimer e Parkinson, mas também alguns casos de dor crônica, fibromialgia e insônia grave”, explica o diretor técnico do Instituto Manga Rosa de Medicina Integrativa. Nessas situações, os pacientes seriam compelidos a utilizar medicamentos importados, com valores que podem ser até três vezes superiores.

Atualmente, os produtos à base de cannabis vendidos em farmácias estão sujeitos ao mesmo controle aplicado a medicamentos de “tarja preta”. As associações argumentam que esses tratamentos devem ser classificados como fitoterápicos, considerando-se substâncias naturais. Com essa classificação, seria possível estabelecer parcerias com o SUS para a distribuição gratuita dos remédios por meio da Farmácia Viva, iniciativa similar à Farmácia Popular, voltada a terapias complementares. Para Thabata Neder, fundadora da ONG Clube Brasileiro de Fitoterapia Canábica e empresária do setor, reconhecer oficialmente a cannabis como fitoterapia é “a única forma de incluir cultivo e acolhimento sob o mesmo CNPJ”.

De acordo com o advogado Felipe Nechar, consultor jurídico da Associação Divina Flor, de Campo Grande, as entidades estão em contato com o governo federal por meio de vias oficiais para assegurar o reconhecimento do uso tradicional e de modelos de agricultura familiar no marco regulatório. “Almejamos um esquema de recuperação onde universidades e a sociedade civil possam, em colaboração, converter conhecimento científico em prática, impulsionar a saúde integrativa e apoiar projetos como a Farmácia Viva.”

Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.

Este texto consta na edição impressa da CartaCapital com o título “Mercado fechado”.

Fonte por: Carta Capital

Gabriel é economista e jornalista, trazendo análises claras sobre mercados financeiros, empreendedorismo e políticas econômicas. Sua habilidade de prever tendências e explicar dados complexos o torna referência para quem busca entender o mundo dos negócios.