A dignidade não se vende

A soberania assegura o poder de selecionar nossas parcerias, defender nossa economia, garantir o emprego de nossa população. É o direito de decisão, sem…

23/07/2025 23:19

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A dignidade não se vende
(Imagem de reprodução da internet).

“Vamos recuperar nosso quintal” – Pete Hegseth, Secretário de Defesa dos EUA, em discurso no US Army War College (23/04/2025)

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A agressão dos EUA ao Brasil, interrompendo uma negociação que apenas se iniciava – por nossa iniciativa, em aliança – tem sido recebida como intempestiva e isenta de qualquer sorte de causalidade. Em síntese, essencialmente ilegítima, como toda intervenção estrangeira na ordem política de um país independente. Seu caráter é ostensivamente político (a aparência econômica do tarifismo é apenas um disfarce) e se apresenta como uma punição insólita a um país soberano.

O Brasil é acusado de, nos rigorosos termos de sua Constituição, estar, por intermédio do poder competente, julgando os crimes de uma quadrilha de delinquentes (civis e militares) que, valendo-se inclusive do aparelho público, tentou um golpe de Estado contra o sistema representativo. Vencido o assalto da extrema-direita, frustraria a manifesta expressão eleitoral da soberania popular, feriria de morte a democracia há tanto custo humano posta de pé e embarcaria o país no desvoto de uma ditadura neofascista. A partir daí… o inferno seria o limite.

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O Poder Judiciário brasileiro agiu da mesma forma que a Justiça americana, negligenciando seu papel ao se omitir quando Donald Trump, em 2021, buscou impedir a tomada de posse de seu sucessor.

Toda essa conduta nociva, quase uma declaração de guerra, marcada pelo bloqueio virtual de nossas exportações, resulta do fato de o líder da tentativa frustrada, Jair Messias Bolsonaro, ser, por meios e estratégias ainda a serem descobertas, um favorecido do atual ocupante da Casa Branca. Sobre a agressão, Trump – o candidato a apoio – adiciona ameaça humilhante: se o Brasil ceder à proteção de seu aliado, o império poderá reexaminar a imposição da majoração unilateral das tarifas, praticada sem seguir os procedimentos do multilateralismo extinto, das regras do comércio livre, das normas da OMC e do que se conhece como direito internacional.

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Em face de tudo, em oposição às normas e práticas diplomáticas de duas nações que mantêm relações há mais de duzentos anos.

É evidente que as mencionadas perdas à economia brasileira, com a imposição unilatéral dessas tarifas, abalarão nosso balanço de pagamentos, com a queda inevitável da receita de exportações; atingirão o lucro e a acumulação de capital de ponderáveis setores da economia – atingindo tanto a indústria quanto o agronegócio –, apenando de forma evidentemente distinta grandes, médios e pequenos empresários – mas atingindo, acima de todos, os trabalhadores, que pagarão a conta com o desemprego, que já alcança 8,5 milhões de brasileiros, ao lado de 38 milhões de desamparados do sistema, que tentam sobreviver na informalidade.

Os impactos econômicos — como o efeito sobre o real, a pressão inflacionária, a falência de pequenas e médias empresas — são efeitos previsíveis e, em alguns casos e em alguma medida, minimizáveis (a eles o ministro da Fazenda já disse estar atento). Conhecidos são os largos recursos do capital. Insustentável é o custo social.

Isto ainda não é tudo, apesar de sua gravidade, pois a grande agressão, a ofensa inominável, é a que visa nossa dignidade, impondo uma “negociação” de índole mafiosa, cujo preço exige a renúncia da dignidade nacional. E esta não admite qualquer alternativa.

Este ponto, fundamental, foi admitido pelo povo brasileiro e pela mídia tradicional, afastando o governo de sua posição de influência e permitindo que a esquerda, atualmente silenciada, retomasse a bandeira do nacionalismo, tão presente na campanha em favor do controle estatal do petróleo. A defesa da soberania nacional, que o depreciativo Estadão classifica como “populismo lulista”, ressoa entre as grandes massas, que se afastaram das ruas.

No entanto, o bom senso não é unanimidade, visto que muitos intelectuais e observadores do cenário internacional se mostram assustados, surpresos, tanto pelo nível de violência do ataque quanto pelo fato dessa violência atingir relações de mais de dois séculos entre “duas sociedades irmãs”.

A dificuldade em discernir a verdadeira natureza das coisas, contudo, não se justifica assim, pois quase todos distinguem o Estado norte-americano de seu atual presidente, elevando aquela desaprovação justa a Trump, como ocorreu recentemente, ao minimizar os crimes do nazismo de Hitler, buscando ignorar o papel do povo alemão nos crimes de guerra que não podia desconhecer; assim como agora, quando a manipulação dos meios de comunicação reduz o horror do genocídio dos palestinos à obsessão sionista de Benjamin Netanyahu.

Trump é tão americano quanto torta de maçã, o Mickey, o Pato Donald, o macarthismo, a segregação racial e os linchamentos. É preciso lembrar que o magnata, como seu paralelo brasileiro, não enganou ninguém – muito menos a sociedade estadunidense. Tudo o que faz e desfaz foi anunciado na campanha eleitoral que o consagrou, de forma inquestionável. Com este respaldo, pode governar em nome dos menos de 1% que controlam o país; está a serviço de seus próprios interesses empresariais e de seus sócios, dos interesses do capital financeiro e das big techs. E conta com a cumplicidade do Congresso, a parcialidade da Suprema Corte, a boa vontade de quase toda a imprensa e, até, a passividade do mundo acadêmico. Não é pouco.

Sua aparente insanidade está repleta de lógica. Trump causa choque, mas não inova. Como provocar surpresa considerando a história do seu país?

Não se deve ignorar o papel do indivíduo na história: ele está sempre presente, condicionado, porém, pelas suas circunstâncias. A presença do rico conjunto de forças econômicas e políticas atuantes no processo social supera em muito o poder do voluntarismo.

Ao longo dos séculos XX e XXI, os EUA, sob governos democratas ou republicanos, realizaram um número incalculável de intervenções externas, diretas e indiretas, em mais de 80 países. Desde o bloqueio criminoso e persistente a Cuba até o apoio a todas as ditaduras, a política externa dos EUA para a América Latina se baseou na lógica da doutrina do big stick (“Fale com suavidade e carregue um porrete – e irá longe”), cunhada por Theodore Roosevelt (1901–1909).

Esta é a natureza do imperialismo, assim exposta por ele mesmo numa narrativa instrutiva de que seremos eternamente gratos. Ou já nos esquecemos da exploração que sofreram os Estados Unidos Mexicanos? Ou que, no século passado, numa guerra já perdida pelo Japão, os EUA, sob a presidência do democrata Harry Truman, lançaram duas bombas atômicas sobre as populações civis de Hiroshima e Nagasaki, ceifando cerca de 300 mil vidas? A lista, só a partir daí, é extensa e não cabe neste espaço sua revisão: basta lembrar que, na Guerra da Coreia, contam-se entre mortos e desaparecidos três milhões de civis (10% da população da península); e, na invasão do Vietnã, algo entre 1,5 e 2 milhões. E são incontáveis as intervenções dos marines e de agentes da CIA desmantelando projetos de democracia na América Latina e no mundo, ou sustentando ditaduras, ou assassinando adversários em todo o mundo, como o congolês Patrice Lumumba.

O relacionamento com nosso País tem sido diferente, marcado pela subserviência das elites econômicas e políticas mundiais, como exemplificado pela frase do general Juraci Magalhães, quando embaixador do Brasil em Washington: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. Esse vira-latino consolidava a política de alinhamento automático, intensificada durante a ditadura militar de 1964, mas já presente desde o início da República, com apenas pequenas variações.

Desde a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos orientam doutrinariamente as Forças Armadas brasileiras e decidem sobre seu armamento. Não invadiram o território nacional por desnecessário, mas participaram de todos os golpes de Estado desde 1945 (inclusive da conspiração que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954) e, por fim, na implantação da ditadura militar (1964–1985), inclusive emprestando especialistas em tortura, como o capitão Charles Rodney Chandler, adido militar no consulado norte-americano em São Paulo. Em 1968, foi morto pela guerrilha de esquerda.

Apesar da predominância dos interesses dos EUA, as relações entre os dois países já conheceram tensões diplomáticas, sobretudo nas poucas ocasiões em que defendemos nossa soberania – desde a exploração nativa do petróleo (contra as pressões da Standard Oil) aos projetos mais recentes de autonomia da produção de energia nuclear e ao programa espacial. A lista é extensa.

O Departamento de Estado e o Pentágono nunca aceitaram positivamente a liderança que o Brasil exerce na América do Sul. Para o imperialismo, nossos esforços de política externa independente, notadamente desenvolvidos a partir do governo Jânio Quadros e intensificados no mandato de João Goulart, são intoleráveis. Frustrados com o impedimento do vice-presidente, determinaram sua deposição e o que a ela se seguiu. Com o fim dos períodos de otimismo proporcionados pelo neoliberalismo (Collor–FHC), foram novamente surpreendidos pela política “ativa e altiva” dos governos de Lula e Dilma, que ressurge após os anos de Temer–Bolsonaro.

No presente momento, a campanha de difamação ataca o Brasil e suas instituições para proteger os interesses das grandes empresas de tecnologia (preocupadas com as restrições que o STF pretende impor aos seus atos no país) e das grandes operadoras de crédito, que observam a redução de seus lucros devido à rápida disseminação do Pix. Isso ocorre em um contexto de reordenamento do poder mundial – marcado pela ascensão da China, com quem o Brasil estabelece relações cada vez mais estreitas –, em que o império em declínio se mostra relutante em fazer concessões. Para Biden ou Obama, por exemplo, é inaceitável nosso papel no BRICS, assim como era intolerável o discurso em defesa da autodeterminação dos povos para Kennedy e Lyndon Johnson.

Os Estados Unidos são um império em declínio, é certo, porém ainda muito poderoso e com capacidade de causar danos incalculáveis.

As implicações da situação ainda não podem ser definidas, mas já é evidente que as perspectivas atuais não indicam um cenário favorável no curto ou médio prazo. Estamos lidando com a intensificação de uma crise que pode afetar tudo, e não seremos meros observadores, pois enfrentamos as consequências dela, decorrentes do abandono, ao longo de décadas, do conceito de soberania.

No momento atual — o conflito político com aspectos tarifários — a primeira via é a negociação que, apesar de nossas restrições, deverá ser firme, pois não se compatibiliza com a dignidade. O governo está correto ao solicitar sua retomada, sem, contudo, descartar a alternativa da reciprocidade seletiva. Contudo, a falta de postura do Congresso e de sua maioria sem firmeza soma-se à astúcia do grande empresariado ao pleitear, desde o início, antes mesmo das partes se sentarem à mesa, que o Brasil descarte a única arma que possui: a alternativa da reciprocidade na guerra tarifária.

A soberania não é uma abstração cívico-poética. Reivindica o direito concreto de selecionar nossas alianças, assegurar nossa economia, utilizar nossa população, desenvolver nossas terras e exportar nossos produtos. Representa o direito de decidir, sem receio de retaliação.

O governo em questão – seja aquele que reside no Palácio da Alvorada ou que ocupa os cargos do Congresso – demonstra ter mapeado a situação e pretende desmobilizar a questão atual, consolidando uma nova base política, afastando-se do neofascismo (o bolsonarismo indigesto e suas vertentes) e, consequentemente, da instabilidade e da incerteza para os negócios. Essa estratégia pode envolver a articulação com o centro, visando à estabilidade política, e o presidente Lula poderá desempenhar um papel de mediação e união.

A sinuca de bico representará o desafio que as circunstâncias obrigarão as esquerdas. Se não conseguem se opor a um cenário que ascende no mundo e no Brasil, terão de, mais uma vez, postergar a expectativa de progresso político.

Despediu-se Preta Gil — Após longa e dolorosa luta contra o câncer, Maria Gadelha Gil Moreira encerrou, no último domingo 20, o “caminho inevitável para a morte” que seu pai cantou em anos idos. Já no batismo, Preta recebera a missão da ousadia — neste País onde é comum nomear como Branca até mesmo meninas negras como ela. Com irreverência e altivez, ela soube enfrentar, ao longo da curta trajetória, o machismo, o racismo, a gordofobia, a boçalidade do fascismo ressurreto. Fica a lembrança de seu riso, da sua alegria, e o desejo de que seus familiares e amigos nele encontrem alívio para a dor que a saudade impõe aos que se aventuram a amar. Ao camarada Gilberto Gil, aquele abraço.

Com a colaboração de Pedro Amaral.

Fonte por: Carta Capital

Autor(a):

Apaixonada por cinema, música e literatura, Júlia Mendes é formada em Jornalismo pela Universidade Federal de São Paulo. Com uma década de experiência, ela já entrevistou artistas de renome e cobriu grandes festivais internacionais. Quando não está escrevendo, Júlia é vista em mostras de cinema ou explorando novas bandas independentes.