A colaboração digital entre China e América Latina recebe novo impulso

O surgimento de um mundo multipolar no século XXI questiona o unilateralismo dos Estados Unidos e desafia sua hegemonia.

17/07/2025 13:50

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A colaboração digital entre China e América Latina recebe novo impulso
(Imagem de reprodução da internet).

Nas últimas décadas, a relação entre a China e a América Latina e o Caribe (ALC) tem se fortalecido consideravelmente, configurando um eixo central para a cooperação Sul-Sul. Inquestionavelmente, a partir do fim da Guerra Fria, a institucionalidade internacional se enfraqueceu, enquanto os Estados Unidos implementaram uma política que combinou intervencionismo e neoliberalismo, gerando crises financeiras, aumento das desigualdades e instabilidades.

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No contexto atual, o Sul Global, sucessor da tradição do Terceiro Mundo, tem procurado redefinir a governança e o desenvolvimento em escala global. A criação de inovações institucionais no âmbito Sul-Sul representa uma expressão das transformações internacionais e uma resposta à resistência das organizações originárias da Segunda Guerra Mundial, sediadas em Washington e seus aliados. A IV Reunião Ministerial do Fórum China-ALC de 2025, em Pequim, sinalizou um novo capítulo nessa relação, delineando um caminho para a próxima década com base nos chamados “Cinco Programas” para o desenvolvimento compartilhado.

Neste texto, detalhamos o Programa 2, focado no desenvolvimento, com ênfase no setor digital. Destaca-se que a América Latina e Caribe enfrentam vulnerabilidades estruturais relevantes no setor digital, evidenciadas por deficiências de infraestrutura, capacitação tecnológica e integração produtiva. A exclusão digital restringe a capacidade das pessoas de gerar renda, acessar serviços públicos e participar de espaços cívicos, limitando a habilidade das comunidades mais carentes de exercer direitos fundamentais como educação, saúde e participação cultural e social. Em síntese, o desafio regional é superar as fragilidades que comprometem o desenvolvimento da economia e da governança digital.

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A análise da convergência entre a China e América Latina e Caribe.

Nas últimas duas décadas, as relações entre a China e os países da América Latina e Caribe (ALC) foram significativamente redefinidas, representando uma nova fase de aproximação geoeconômica, diplomática e estratégica. Esse processo tem sido impulsionado tanto pelos interesses chineses de diversificação econômica, acesso a mercados e recursos, quanto pelas necessidades latino-americanas de investimentos, infraestrutura e novas parcerias fora do eixo tradicional do hemisfério norte, buscando escapar tanto da tutela dos Estados Unidos e seus aliados, bem como da consequente imposição da agenda neoliberal.

Em 2000, o mercado chinês representava menos de 2% das exportações da América Latina, mas o rápido crescimento da China e a demanda resultante impulsionaram o subsequente boom da interação comercial, atingindo, em 2024, um comércio de mais de US$ 518 bilhões (Roy, 2025). Durante as duas décadas e meia do século XXI, os Estados Unidos deixaram de ser o principal parceiro comercial da América Latina e Caribe, enquanto a China se tornou o maior parceiro da maioria dos países. Adicionalmente, a China já implementou mais de 200 projetos de infraestrutura e empreendimentos industriais em diversos países latino-americanos e caribenhos por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI). Em conjunto com essa adesão à BRI, vários países estabeleceram relações diplomáticas com a China.

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O continente, historicamente visto por Washington como seu quintal, alvo de inúmeras intervenções e imposições de agendas econômicas, agora vislumbra um novo modelo de cooperação. Apesar das contradições e assimetrias inerentes às relações interestatais, a China tem defendido um modelo de cooperação baseado na autodeterminação, no princípio de ampla consulta e na busca pelo desenvolvimento compartilhado. Isso impede qualquer tipo de falsa simetria em relação ao padrão de interação dos Estados Unidos com a região.

Em paralelo ao aumento dos fluxos, observa-se a institucionalização das relações sino- latino-americanas, notadamente após a criação, em 2014, do Fórum China-CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Esta instância multilateral estabeleceu uma plataforma permanente de diálogo político, cooperação econômica e intercâmbio cultural entre a China e os 33 países membros da CELAC. No âmbito do Fórum China-CELAC, diversas áreas prioritárias de colaboração têm sido definidas, incluindo infraestrutura, ciência e tecnologia, educação, meio ambiente, saúde pública e segurança alimentar. A China tem financiado bolsas de estudo, intercâmbios acadêmicos, missões técnicas, centros de pesquisa conjunta e parcerias público-privadas em setores estratégicos. A lógica subjacente é a de promover o crescimento econômico e o desenvolvimento endógeno da região, com base em capacidades locais e transferência tecnológica.

É importante notar que certos obstáculos para aprofundar esse relacionamento surgem da própria CELAC, devido às suas tendências anteriores de desintegração econômica e fragmentação política. Suas divergências políticas e baixa institucionalização, considerando que não possui órgãos executivos ou judiciais, expuseram a fragilidade da Comunidade, principalmente após a eleição de Mauricio Macri (Argentina), em 2015, o impeachment de Dilma Rousseff (Brasil), em 2016, a eleição de Sebastián Piñera (Chile), em 2017, e a eleição de Iván Duque (Colômbia), em 2018. A eleição de Bolsonaro levou, inclusive, a um recuo da liderança brasileira e ao enfraquecimento da Unasul ao ser substituída por iniciativas como o Fórum Prosul e o Grupo de Lima (Barros; Gonçalves; Samurriu (2020).

A eleição de Lula resgatou a integração sul-americana como prioridade nacional e a retomada do diálogo entre as lideranças do continente. Nesse contexto, a interação bilateral entre Brasil e China tem se mostrado benéfica, ao mesmo tempo em que aprofunda outras áreas de atuação multilateral, como evidenciou a recente Cúpula dos BRICS no Brasil.

Os cinco programas e as tecnologias digitais

O principal destaque da IV Reunião Ministerial do Fórum China-CELAC em 2025 foi o lançamento de um pacote abrangente de iniciativas denominado “Cinco Programas para o Desenvolvimento Compartilhado”. A reunião aprovou a Declaração de Pequim e o Plano de Ação Conjunto China-CELAC para Cooperação em Áreas Chave (2025-2027), que contemplava uma linha de crédito de 66 bilhões de yuans (aproximadamente R$ 52 bilhões) para financiar projetos de desenvolvimento nos países da região. Foram acordados mais de 100 projetos de cooperação de longo prazo, e a China anunciou 20 medidas de apoio ao desenvolvimento da ALC. Ressaltou-se também a renovação dos compromissos com a implementação da BRI na região, o aprofundamento da cooperação científica e tecnológica (com ênfase em inteligência artificial, biotecnologia e energias limpas) e a promoção de um comércio mais equilibrado e diversificado.

Os Cinco Programas são estruturados nos seguintes eixos: 1) o Programa de Solidariedade, que consiste em convidar, anualmente, 300 membros de partidos políticos de países da CELAC para visitas à China voltadas para a cooperação em melhores práticas de governança; 2) o Programa de Desenvolvimento que foca em crédito para o desenvolvimento da região, além do aumento da importação de produtos latino-americanos e caribenhos e a expansão da cooperação em áreas como 5G, economia digital e inteligência artificial; 3) o Programa Civilizacional que prioriza conferências de artes e diálogos civilizacionais, projetos conjuntos em áreas de patrimônio cultural como sítios arqueológicos, conservação e restauração de locais antigos e históricos e exposições em museus; 4) O Programa de Paz centrado em treinamento de policiais com base nas necessidades dos membros da CELAC, cooperação em cibersegurança, contraterrorismo, controle de narcotráfico e estabelecimento da Zona de Paz e Declaração dos Estados Membros da Agência para a Proibição de Armas Nucleares na América Latina e no Caribe; e 5) O Programa de Conectividade entre Pessoas cujo objetivo é distribuir bolsas de estudo para alunos e professores, impulsionando o treinamento, a qualificação e a formação de profissionais.

O Programa para o Desenvolvimento constitui um avanço estratégico no reforço da autonomia tecnológica no setor digital da América Latina e Caribe. Essas ações expandem a capacidade produtiva da região, ao mesmo tempo em que diminuem a dependência histórica de tecnologias americanas e das grandes empresas de tecnologia, cujos impactos, frequentemente, incluem até mesmo ameaças à soberania e estabilidade política. Nesse contexto, o Programa alinha-se com os princípios da Rota da Seda Digital, enfatizando a cooperação multilateral em infraestrutura digital e inovação, com o objetivo de construir um ecossistema tecnológico mais integrado e menos suscetível a influências externas.

A China tem promovido, nas últimas décadas, um sistema digital complexo (Maia, 2025). Esse sistema é composto, primeiramente, por uma infraestrutura digital avançada, que engloba redes de banda larga (fibra óptica, 5G e satélites), data centers para suportar nuvens, armazenamento e processamento de dados. Adicionalmente, compreende-se um conjunto de empresas de plataformas que atuam em diversos setores, desde as grandes corporações BATX (Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi) até empresas menores que operam em fronteiras tecnológicas como e-commerce, fintechs e serviços que abrangem o entretenimento e a indústria. Por fim, são relevantes empresas-chave na produção de dispositivos e insumos para o setor digital, como fabricantes de smartphones e computadores (Huawei, Xiaomi, Oppo, Vivo, Lenovo), drones (DJI), componentes eletrônicos e semicondutores (SMIC, BOE Technology) e baterias (CATL e BYD).

A China avançou na fronteira tecnológica nas áreas digitais, transformando-se em um polo alternativo ao domínio ocidental. Isso possibilita que Pequim se torne um parceiro fundamental no Sul Global. O Programa para o Desenvolvimento, ao focar nessas áreas, não apenas acelera a transformação digital local, mas também cria oportunidades para que a América Latina e o Caribe se integrem à nova fronteira tecnológica. A Rota da Seda Digital, nesse contexto, funciona como um modelo de cooperação horizontal, onde o compartilhamento de conhecimento e investimentos em infraestrutura crítica permite à região construir um futuro digital mais equilibrado e sustentável. Atualmente, portanto, a governança digital e o desenvolvimento socioeconômico da região dependem diretamente da adoção de tecnologias como 5G, Inteligência Artificial e Big Data, que otimizam serviços públicos, impulsionam a indústria e promovem a inclusão digital.

Consiste em colaboração entre nações e no aumento de investimentos e créditos em diversos setores, incluindo o digital. Ressalta-se que empresas chinesas como Huawei e Alibaba estão expandindo suas operações na América Latina, oferecendo soluções digitais e de infraestrutura. Para a região, é de suma importância superar a carência de infraestrutura digital em áreas remotas e a falta de profissionais, sem a qual não se progride na inclusão digital. Essa é a base para avançar em diversas outras áreas como cidades inteligentes, agricultura de precisão, governança digital e serviços financeiros digitais.

A intensificação das relações entre China e América Latina e Caribe deve ser compreendida no contexto da transição sistêmica global em curso. O mundo multipolar que emerge no século XXI questiona o unilateralismo dos Estados Unidos e desafia estruturas hegemônicas de poder lideradas por Washington desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A ascensão do Sul Global, e agora do Brics ampliado, cuja representatividade já alcança 54% da população e 45% do PIB em poder de compra mundial, redefinem a correlação de forças e abrem possibilidades inéditas no âmbito Sul-Sul.

A elevação de Trump nos Estados Unidos tem intensificado o unilateralismo, manifestado por tarifas generalizadas e agressões sem anuência do Conselho de Segurança da ONU, como ocorreu com o Irã. Nesse sentido, a parceria entre a China e os países da América Latina e Caribe reforça essa tendência de fortalecer o multilateralismo e os espaços de governança. Isso é particularmente crucial porque a presença da China, sobretudo com a BRI, é uma alternativa fundamental à histórica relação disfuncional de Washington com o continente, que combinou ingerências e imposição de agendas neoliberais. O Fórum China-CELAC está assumindo um novo patamar, com a elaboração e implementação de planos de longo prazo. Essa é a própria evidência do adensamento das relações Sul-Sul, construídas à margem do antigo polo hegemônico. É, ao mesmo tempo, uma sinalização das novas configurações de poder a emergir no mundo, bem como uma resposta às políticas externas erráticas da Casa Branca.

Isis Paris Maia é historiadora e doutoranda em Políticas Públicas pela UFRGS. Atualmente, investiga os modelos institucionais chineses no enfrentamento da pobreza no país. Email: [email protected]

Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.

Referências

Barros, Pedro; Gonçalves, Julia; Samúrio, Sofia. Desintegração econômica e fragmentação da governança regional na América do Sul em tempos de Covid-19. Boletim de Economia e Política Internacional, v. 27, p. 125-142, 2020. Brasília: Ipea. Disponível em: https://redintercol.net/images/otras_publicaciones/Articulo%20Julia%20Borba.pdf. Acesso em: 10 jul. 2025. Maia, Isis Paris. A China e seu ecossistema digital: governança e políticas públicas. Terracota: A Revista do GECHINA, v. 3, n. 1, edição especial, março 2025. Disponível em: https://mngt.unb.br/2025/03/31/edicao-de-marco-2025-v-3-n-1/. Acesso em: 16 jul. 2025. Paussotto, Diego; Noga, Tiago; Ungaretti, Carla; Dória, Guilherme. A iniciativa do Cinturão e Rota e os dilemas da América Latina. Revista Tempo do Mundo, v. 24, p. 77-106, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/revistas/index.php/rtm/article/view/259/248. Acesso em 17/07/2025.

Roy, Diana. China’s Growing Influence in Latin America. Council on Foreign Relations, 6 jun. 2025. Disponível em: https://www.cfr.org/backgrounder/china-influence-latin-america-argentina-brazil-venezuela-security-energy-bri. Acesso em: 16 jul. 2025.

Fonte por: Brasil de Fato

Autor(a):

Lucas Almeida é o alívio cômico do jornal, transformando o cotidiano em crônicas hilárias e cheias de ironia. Com uma vasta experiência em stand-up comedy e redação humorística, ele garante boas risadas em meio às notícias.