Ao apresentar seu relatório final, em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade listou oficialmente 434 mortos e desaparecidos políticos, sem incluir indígenas. Isso ocorreu porque a ditadura militar não poupou os povos originários – ao contrário, a própria CNV estimou que alguns milhares foram mortos no período. A população indígena não era o foco do colegiado, que tratou da temática de forma secundária, somente após pressão da sociedade civil.
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Na sua compilação temática sobre os povos indígenas, a Comissão contabilizou pelo menos 8.350 mortes decorrentes de ações diretas ou da inação de agentes do Estado, quase 20 vezes mais do que os considerados mortos e desaparecidos políticos. O número, admitiu a CNV, está muito além da realidade, pois se baseou em investigações sobre apenas dez etnias, dentre os mais de 300 que o Brasil possui mapeados.
Para que o assunto esteja no foco do debate, e a fim de identificar e evitar a repetição dessas falhas – acentuadas no período ditatorial, mas presentes desde a colonização, e ainda existentes após a redemocratização –, os povos indígenas propõem a criação de uma Comissão da Verdade.
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Remoções forçadas, perseguição, intimidação, cárcere privado, contaminação por doenças como sarampo e varíola, proibição de falar a língua, tortura, assassinato, estupro e sequestro de crianças criadas pelos próprios invasores. A enumeração feita por Paulino Montejo, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), representa apenas uma parcela das violências perpetradas pelos militares contra os povos indígenas, muitas delas ainda hoje ocultas.
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Apesar das violações de direitos dos povos originários não terem iniciado durante a ditadura, o procurador da República Marlon Weichert aponta que houve um aumento ou intensificação de padrões nesse período. Foram construídas grandes obras de infraestrutura e “integração”, como rodovias e usinas hidrelétricas, ignorando qualquer direito indígena e com o custo de muitas vidas.
A ausência de investigações adequadas sobre as violências do regime militar impede o registro de inúmeros casos em que povos indígenas continuaram a ter seus direitos infringidos após o fim da ditadura. Os Yanomami, que sofreram centenas de mortes durante a construção da rodovia Perimetral Norte e novamente no governo Bolsonaro, e os Arara, impactados pela Transamazônica no regime militar, pela usina Belo Monte e pelo negligenciamento nas últimas décadas, representam apenas alguns dos muitos exemplos.
A ocultação da verdade e o esquecimento são a força motriz da repetição e da recorrência, afirma Weichert. A sociedade brasileira naturaliza a violência contra os povos indígenas, naturaliza o esbulho das terras indígenas pelo agronegócio, pelo latifúndio. É uma prova viva de como a falta de conhecimento dessas violações facilita e contribui para a recorrência desses eventos, diz o procurador.
Montejo e Weichert são duas das principais responsáveis pelo Fórum Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça (Fórum JTPI), que reúne organizações indígenas e da sociedade civil que defendem a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV). Além da Apib e da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), o Fórum é liderado pelo Instituto de Políticas Relacionais (IPR) e pelo Observatório de Direitos e Políticas Indígenas da Universidade de Brasília (Obind-UnB).
A alegação, já presente nas 13 recomendações que a CNV fez para o Estado brasileiro em relação aos povos indígenas, ganhou força nos últimos anos por dois motivos, segundo Weichert. O primeiro é um processo de compreensão gradual do conceito de justiça de transição pelos indígenas nas últimas décadas, até que a ideia amadurecesse e fosse apropriada pelos povos originários. Nos últimos anos, a Apib tem promovido seminários sobre o tema em seus territórios de abrangência, em uma espécie de “ensaio” para a CNIV.
A segunda é a urgência histórico-jurídica provocada pelo avanço da tese do Marco Temporal, que constitui o principal ponto de disputa dos povos indígenas: a demarcação de terras. A tese, que limita a demarcação às terras ocupadas por indígenas na data da promulgação da Constituição de 1988, foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e posteriormente transformada em lei pelo Congresso. Desde então, tramita em processo de conciliação no Supremo.
Relatar a trajetória da repressão aos povos indígenas durante a ditadura expõe a falsidade e o equívoco conceitual do entendimento do marco temporal. Trata-se da história de povos que não estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988 devido à violação de seus direitos, ao deslocamento forçado, à expulsão e a perseguições, resultando em mortes e dizimas.
A proposta oficial de criação da CNIV, elaborada pelo Fórum JTPI, será apresentada ao Estado brasileiro nos próximos meses. Ainda há alguns pontos em discussão, incluindo seu escopo temporal – enquanto a CNV cobriu o período entre as promulgações das Constituições de 1946 e 1988, com ênfase no período militar, há debates sobre a CNIV abranger um período mais amplo –, mas existe consenso de que o protagonismo indígena precisa estar no centro.
Queremos reescrever a história dos povos indígenas no Brasil, pois até o momento tudo foi “falso”, sem considerar, sem valorizar a participação dos povos indígenas na formação social brasileira. A não repetição [das violações da ditadura] tem que vir através de políticas de Estado estruturantes”, afirma Paulino Montejo, da Apib.
O que se sabe sobre as violações cometidas contra os povos indígenas durante a ditadura militar.
Recomendações da Comissão Nacional da Verdade
Segundo a Comissão, entre as 8.350 vítimas indígenas da ditadura, foram mortos 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, mais de 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinta-Larga, 192 Xetá, no mínimo 354 Yanomami e 85 Xavante de Marãiwatsédê. Em relação aos Guarani e Kaiowá, recorrentemente atacados no Mato Grosso do Sul e no Paraná, a CNV “não ousou apresentar estimativas”. Ao longo do documento de 60 páginas, são citados mais de 50 povos que sofreram algum tipo de violência durante as quatro décadas [1946 a 1988] analisadas, incluindo indígenas isolados.
Ademais de tratar de uma parte das violações enfrentadas pelos povos indígenas durante a ditadura, a CNV apresentou 13 recomendações ao Estado brasileiro.
Recomenda-se que o Brasil apresentasse um pedido público de desculpas pelas violações e pelo esbulho territorial, bem como reconhecesse a motivação política da perseguição aos povos indígenas no período investigado.
Na área de reparação, propôs-se a ampliação da anistia para abranger a reparação coletiva, a criação de um grupo de trabalho para orientar os processos de anistia e reparação aos povos indígenas afetados, o fortalecimento de políticas de atenção à saúde, a recuperação ambiental das terras indígenas degradadas e, “como a forma mais fundamental de reparação coletiva”, a regularização e desintrusão das terras indígenas.
A CNV também apresentou sugestões na área da memória e informação, propondo campanhas nacionais sobre o respeito aos direitos dos povos indígenas, a inclusão no currículo escolar das violações sofridas por essa população, a criação de fundos de incentivo à pesquisa e a divulgação do tema, e a sistematização no Arquivo Nacional de toda a documentação relacionada a essas violações.
Em março de 2023, um relatório conduzido pelo Instituto Vladimir Herzog identificou que a maior parte das recomendações referentes aos povos indígenas havia sofrido revés nos anos anteriores, durante o governo de Jair Bolsonaro. O Instituto acompanha o cumprimento das recomendações da CNV de forma contínua e um novo relatório será divulgado nos próximos meses.
Outras iniciativas sobre as violações contra indígenas
Um dos mais relevantes é o Relatório Figueiredo, que evidenciou violentas ações praticadas contra povos indígenas nas décadas de 1940, 1950 e 1960. Elaborado pelo procurador Jader de Figueiredo Correia em 1967, foi utilizado como base para a extinção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e para a criação da Fundação Nacional do Índio (Funai, atualmente Fundação Nacional dos Povos Indígenas). O relatório permaneceu considerado “eliminado” por décadas, até ser descoberto pelo ativista e pesquisador Marcelo Zelic, em 2013.
Zelic, que faleceu em maio de 2023, desempenhou um papel importante na CNV, que investigou, em parte, as violações cometidas contra povos indígenas. Foi um dos principais proponentes da criação de uma Comissão Nacional Indígena. Ele fundou o Arquivo Memória, que reúne milhões de páginas de documentos relacionados a direitos humanos, à ditadura e aos povos indígenas.
A outra iniciativa é o livro “Os fuzis e as flechas: História de sangue e resistência indígena na ditadura”, de Rubens Valente. Uma das histórias do livro é narrada no segundo episódio do podcast Morte e Vida Javari, da Agência Pública.
A posição do governo Lula
Apesar da criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da nomeação da primeira pessoa indígena para comandar a Funai, bem como da mudança de postura em relação aos povos indígenas em comparação com o governo Bolsonaro, a posição do governo Lula em relação ao estabelecimento da CNIV é incerta.
A ministra Sonia Guajajara, do MPI, já se manifestou favoravelmente em relação à iniciativa, assim como a presidente da Funai, Joenia Wapichana. Contudo, em uma audiência promovida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o tema, o representante do governo brasileiro, Pedro Montenegro, do Itamaraty, declarou que a criação da CNIV ainda está “em debate” e não está “madura” para o Estado.
Para Paulino Montejo, da Apib, “não há muita vontade por parte do governo, que não quer ter atrito com os militares”. Na visão de Marlon Weichert, do MPF, a postura da atual gestão “representa as dificuldades de um governo de frente ampla”. “Nós somos muito cientes das dificuldades, mas também muito otimistas com a possibilidade e com o potencial que uma CNIV tem para fazer a diferença na história do país”, diz o procurador.
A Pública contatou os ministérios dos Povos Indígenas e dos Direitos Humanos (MDHC), questionando o posicionamento das pastas em relação à criação da CNIV e as ações que foram adotadas em relação ao tema. O MDHC informou que a atribuição da pauta é do MPI. O Ministério dos Povos Indígenas não respondeu até a publicação da matéria. O espaço permanece aberto para manifestação.
Reparos realizados.
Esforços liderados pelo Ministério Público Federal, por organizações indígenas e organizações não governamentais alcançaram reparação tanto no âmbito judicial quanto no da memória. Contudo, diversas das violações contra povos indígenas não tiveram ações concretas e outras ainda permaneceram desconhecidas.
A Comissão de Anistia, criada em novembro de 2002, viu três casos envolvendo povos indígenas obterem resultados positivos.
Em 2014, 16 indígenas Suruã-Aikewara foram amnistiados individualmente, recebendo 120 salários mínimos cada. O ocorrido está relacionado à Guerra do Araguaia, durante o regime militar, e às vítimas foram os Suruã, cujo território se localiza próximo à área onde o grupo guerrilheiro se estabeleceu, sofrendo maus-tratos, violência e tortura, além de serem forçados a colaborar na caçada aos guerrilheiros, que foram massacrados. Além da anistia individual, os indígenas buscaram uma reparação coletiva, com a expansão de suas terras, que foram demarcadas durante a ditadura, mas ainda não foi realizada.
Recentemente, em 2024, a Comissão anistiou coletivamente, de forma inédita, os povos Krenak (MG) e Guarani Kaiowá, da Terra Indígena Guyraroká (MS). Com as reconhecimentos, a Comissão fez um pedido público de perdão em nome do Estado brasileiro para ambos os povos, além de ter recomendado a demarcação dos territórios e medidas nas áreas de saúde, economia, cultura e memória.
Os Guarani Kaiowá foram retirados de seus territórios durante a ditadura, em uma política de deslocamento de comunidades e reassentamento em pequenas reservas indígenas entre 1940 e 1980. Eles reivindicam a demarcação de seu território, cuja ação foi cancelada pelo STF em 2014, com base na teoria do Marco Temporal.
Os Krenak, além de remoções forçadas, torturas, maus-tratos e assassinatos, foram aprisionados em sua própria terra e sua identidade passou a representar o cativeiro de povos indígenas.
Em Resplendor (MG), a ditadura estabeleceu o Reformatório Krenak, onde permaneceram detidos mais de cem indivíduos de pelo menos 15 etnias, muitos sem acusação formal, ou por razões como “vadiagem” e consumo de álcool. Após o encerramento do que a CNV denominou “campo de concentração”, o regime militar transferiu os Krenak para Carmélia (MG), conhecida como Fazenda Guarani. Ali também ocorreu o aprisionamento de indígenas de diversas etnias, alguns deles reprimidos pela empresa Aracruz Celulose.
A acusação de violações do regime contra os Krenak é objeto de duas ações judiciais movidas pelo Ministério Público Federal. A mais recente, datada de março, requer indenização coletiva e individual para os Krenak que foram deslocados de suas terras e passaram a residir em uma propriedade rural no interior de São Paulo. A decisão sobre este processo ainda não foi emitida.
A segunda ação, realizada em 2015, já obteve sentenças na primeira e segunda instâncias, com condenação do Estado brasileiro por danos coletivos contra os Krenak. Além de uma cerimônia de reconhecimento das violações e medidas relacionadas à degradação ambiental e preservação do idioma, o Judiciário também determinou a conclusão da identificação e delimitação da TI Sete Salões, o que ocorreu em 2023. O território ainda aguarda portaria declaratória do Ministério da Justiça.
Outra ação, na área penal, buscava responsabilizar criminalmente o ex-capitão da Polícia Militar de Minas Gerais Manoel dos Santos Pinheiro pelo crime de genocídio contra os Krenak. O militar, contudo, faleceu em 2023, antes que a ação fosse julgada.
Adicionalmente aos grupos étnicos abrangidos pela Comissão da Anistia, os Waimiri-Atroari obtiveram decisões judiciais favoráveis em duas situações. Em 2018, uma medida liminar identificou violações sofridas pelo povo na abertura da BR-174 (Manaus-Boa Vista) durante o período militar, nas décadas de 1970 e 1980, quando a população diminuiu de 3 mil para 332 indígenas. O processo encontra-se em fase de conciliação. Em 2023, o Poder Judiciário reconheceu danos decorrentes das inundações causadas pela construção da usina hidrelétrica de Balbina.
Em 2019, as comunidades Tenharim e Jiahui, impactadas pela construção da Transamazônica (BR-230) no sul do Amazonas, obtiveram decisão judicial favorável em ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, porém a sentença foi suspensa. A construção da Transamazônica envolveu a participação da Paranapanema, empresa de extração mineral que teria mantido indígenas em situação de “semi-escravidão” durante a ditadura, conforme revelado pela Pública em seu especial “Empresas cúmplices da ditadura”. Indígenas Tukano e Waimiri-Atroari também foram afetados pela atuação da empresa. Nesse ano, a Justiça Federal manteve parte da condenação.
A acusação criminal também foi movida contra a União, o Mato Grosso e a Funai, em relação às violações sofridas pelos Xavante da TI Marãiwatsãdê, no Mato Grosso. Além disso, foram acionados 13 herdeiros da fazenda Suiã-Missu, incluindo o empresário bilionário Rubens Ometto, da Cosan. Inicialmente, os indígenas foram mortos ao resistir à invasão de seu território e submetidos a condições análogas à escravidão. Posteriormente, foram transferidos por meio de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para outra área do estado, com quase uma centena de pessoas perdidas durante o processo.
Existem ações que impactaram outros povos, incluindo os Awa-Guarani, afetados pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu; os Awa-Canoeiro, que foram considerados extintos após um deslocamento forçado; os Panará, impactados pela construção da BR-163 e por remoções forçadas, sendo os primeiros a obter uma condenação do Estado brasileiro; os Akrã-Tkatéjá (Gavião da Montanha), deslocados de suas terras para a construção da hidrelétrica de Tucuruí; e os Cinta-Larga, vítimas de genocídio no início da década de 1960.
Fonte por: Carta Capital